23 setembro 2012

A senhora, a manteiga e os lenços


– Mocinha! Ei, aqui! Aqui!
– Pois não, senhora. Está sentindo alguma dor?
– Dor? Não, não. É pior que dor. É a manteiga.
– A manteiga?
– Sim, a manteiga. Está vendo essa cesta de pães aqui na minha frente? Me aponte a manteiga ao lado dela. Não consegue, não é? Porque não tem manteiga. Tem requeijão, tem geléia, tem margarina, mas não tem a droga da manteiga.
– Vou providenciar, senhora.
– “Vou providenciar”, “vou providenciar”. É a terceira vez que me dizem isso. Não quero que você vá providenciar nada! Quero que tenha providenciado!
– Certo, senhora, terei providenciado.
– “Terei providenciado, terei providenciado”. O que significa isso? Se você tivesse de fato providenciado, a manteiga estaria aqui. Mas está? Se estiver, me aponte.
– Não está…
– Muito bem! Finalmente alguma coisa sábia. A manteiga não está aqui. E sabe o que mais não está?
– Não…
– Os lenços.
– Os lenços?
– Sim, os lenços! Eu fui bem clara: tenho o hábito de usar lenços de papel várias vezes ao dia. Tenho rinite, meu nariz escorre: lenço. Meu rosto sua, ainda mais aqui, com essa droga de ar condicionado que não funciona: lenço. Vou me maquiar daqui a pouco, e se eu passar blush demais, adivinha do que vou precisar? Lenço. Vou precisar de lenço.
–  Olha, vou ver o que posso fazer, mas até onde eu sei não providenciamos lenços…
– “Não providenciamos lenços”? Você está louca? Como, “não providenciamos lenços”?
A mocinha procurou um papel no bolso do avental, não encontrou e virou os olhos para cima, tentando se lembrar:
– Providenciamos algodão… Absorventes higiênicos… Touca de banho… Sabonete… Mas lenços…
– Isso, lenços!
– Não providenciamos lenços.
– Mas isso é um absurdo. O que eu uso no lugar de lenços, me diga!
– Você pode usar papel higiênico, não? Tem papel higiênico no banh..
– Ora, é claro que tem papel higiênico no banheiro! Era só o que faltava, não ter papel higiênico no banheiro! Se eu quisesse papel higiênico, o que você acha que eu faria? Eu entraria no banheiro e pegaria papel higiênico. Mas eu disse que quero papel higiênico? Não, eu fui clara: quero LENÇOS.
– Mas é parecido…
– Parecido, parecido, ora! Se fosse tão parecido, porque fabricariam lenço e papel higiênico, me diga? Providencie lenços, ou chamarei o gerente. O gerente, não, vou falar direto com a ouvidoria! E não se esqueça da manteiga.
– A manteiga?
– Por Deus, olhe essa cesta de pães e me aponte a manteiga! Não tem, está vendo!
– Certo, vou providenciar…
– Vou providenciar não, tenha providenciado!
Nesse momento, alguém entrou empurrando um carrinho. O carrinho foi deixado ao lado da senhora. A mocinha abriu a boca.
– O que é isso no carrinho?!
– Como, o que é isso no carrinho? Um bebê, ora! Que pergunta!
– Um bebê? Mas é seu?
– É óbvio que é meu! Está louca? Olhe à sua volta, minha filha! Estamos numa maternidade!
– Mas… Eu pensei que você estivesse visitando alguém… Ou…
– Não estou visitando ninguém, vim ter meu bebê! Nasceu faz três horas! E sabe o que isso significa?
– Puxa, difícil colocar em palavras…
– Então deixa que eu te explico: significa que estou há três horas sem tomar meu café da manhã com pão e manteiga! E nem posso gritar muito, senão vou suar e não tenho lenço!
A mocinha ia dizer “vou providenciar”, mas não disse nada e deu dois passos em direção à porta. Ao passar pelo carrinho, viu o bebê dormindo e não resistiu:
– É tão lindo…
– O que é tão lindo?
– Como, o quê? Seu bebê…
– Sabe o que seria ainda mais lindo?
– O quê?
– Você trazer a manteiga e os lenços!!!
A mocinha concordou e saiu. A senhora suspirou e pegou o bebê nos braços.
– Quanta gente tonta neste mundo, meu filho! Quanta dificuldade! Bem-vindo!
O bebê acordou e olhou a senhora. Era tudo muito novo. Não sabia o que havia ocorrido nas últimas três horas, não sabia nem essas palavras, “não”, “sabia”, “o”, “que”, “havia”, “ocorrido”, “nas”, “últimas”, “três”, “horas”, mas uma sensação em seu interior parecia querer lhe dizer: você está vivo. Um discurso sem palavras deixava claro que viver era uma aventura. Aprendizados, dificuldades, tristezas, alegrias: um mistério magnífico para céticos e religiosos, uma maravilha por trás de cada fato do cotidiano, um suspiro estupefato do primeiro ao último dia. Aventura: o bebê sabia. Talvez precisasse se lembrar ao crescer, mas, naquele momento, ele sabia. E era por isso que seus olhos brilhavam tanto.
– O que é isso nos seus olhos? – a senhora disse.
O bebê olhou a senhora atentamente. Então ela olhou bem fundo nos olhos dele.
– Eu sabia… Estão sujos. Puta que pariu, nem limpar seus olhos direito eles limpam! Mocinha! Ei, aqui! Lenços!

Liliane Prata

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